06/06/2014 20:18
Francisco Miguel de Moura
Escritor brasileiro
Todos nós, principalmente os interioranos, tivemos o rio da nossa infância. E esta lembrança, às vezes traz saudade, sentimento natural que vem por conta de que a água preenche cerca de dois terços do nosso mundo, o planeta Terra. Assim é o nosso corpo também: 70% de líquido, embora animais terrestres. Todos os poetas têm um rio para cantar. Fernando Pessoa é o grande exemplo. Num poema em que diz amar o rio Tejo. “Só que o Tejo não corre por minha aldeia”. Mas, certamente, as águas do rio de sua aldeia desaguariam no Tejo. Com o trocadilho, faz uma imagem belíssima do seu rio. Da Costa e Silva tem o “Parnaíba, o velho monge, as barbas brancas alongando e, ao longe, o mugido dos bois de minha terra” - o grande rio da saudade do maior poeta piauiense. Já o meu rio de criança, qual é? O Parnaíba também é o meu rio, “só que ele não passa por minha aldeia”. Em “Jenipapeiro”, minha aldeia, quem passa é um rio que não é rio, é um riacho grande, o Riachão. Mas, no meu tempo de menino, nas cheias de outubro até janeiro, ele corria como um rio de vergonha. Eu me encantava quando ouvia o ronco de sua primeira cheia, a primeira “cabeçada d’água” em grande altura correndo sobre o leito seco. Era um espetáculo maravilhoso. Quem estivesse no meio não se livraria da morte, a menos que soubesse nadar bem, coisa que eu nunca aprendi. Meu pai era um bom nadador, gostava de atravessá-lo nas cheias, levando as pessoas e seus pertences para a outra margem. Ele gostava também de pescar e pescava com tarrafas feitas por ele próprio, pescava peixes grandes e peixinhos para o nosso almoço, o nosso “pirão”. Eu só pescava no verão, quando o Riachão baixava a corredeira e deixava poços enormes (para mim, naquela idade). Eram mandis, curimatãs, branquinhas e corrós, que a gente ia buscar dentro das locas. Alegremente, levava o resultado de minha pesca para casa, e então minha mãe preparava o almoço. Era uma festa. No tempo das enchentes o meu rio era um rio “macho”, com força, que nos embevecia e ao mesmo tempo nos causava medo. Depois secava e a gente tinha pena, ia apenas tomar banho em cacimbas cavadas no leito. Portanto, meu rio não foi aquele açude em que me banhava nu, com Rosinha também nua, ambos inocentes, no Angico Branco (região de Picos). Ela está imortalizada em meu poema “Sonetos da Paixão” e também num soneto inédito, denominado “Primeira Namorada”, onde eu abro a cortina das minhas mentiras (ficções de poeta) e troco o nome de Rosinha pelo verdadeiro: Francelina.
Todos tivemos o nosso rio como tivemos as nossas namoradas. No caso da escritora Deolinda Marques, deve ter tido namorados, pois ela teve por rio o Guaribas, na hoje cidade de Bocaina, rio que naquele tempo ainda era perene, e agora se orgulha da sua barragem, por mim imortalizada no romance “Dom Xicote”. Mas o Guaribas também foi o meu rio, quando meu pai, professor andejo, morou no encontro do Riachão com o Guaribas, lugarzinho de nome Barra, próximo de Bocaina. Foi quando meu pai fazia tarrafas, pescava no encontro dos rios e fazia a comida para nós pequenos, quando chegava a nossa casa, em silêncio: - Ele estava separado de minha mãe, que ficou na Sussuapara, por causa de brigas do casal. Desse tempo tenho mais saudades. Por isto pergunto, no meu soneto “Saudade”: Por que a saudade é também uma coisa triste? Por que os tempos mais pesados, mais sofridos em carência, são os que mais ficam em nossa memória? Quem chegar a ler “O menino quase perdido” poderá encontrar alguma resposta, em fragmentos, do que estou referindo.
O Itaim, para onde corre o Guaribas, também foi meu rio. Morávamos em “Aroeiras”, do município de Picos. Também foi um tempo salobro e insalubre, tal como as águas povoadas de piranhas do itainense rio. Por essa razão, nunca pus os pés nele. Como sabemos, o Itaim despeja no Canindé: este eu não conheço, é meu elo perdido das águas. Eis a rede hidrográfica do médio Piauí, a parte que começa na zona mais seca, nos contrafortes da Serra do Araripe. Se eu errei alguma coisa, me perdoem os geógrafos. Aqui me interessam primeiro as águas da minha saudade, não os elementos geográficos em si. É uma geografia sentimental.
Sequer tive a oportunidade de estar na foz do Canindé, quando se esparrama no Parnaíba. À nossa Teresina cheguei, para morar definitivamente, em 1964. Mas já conhecia o grande rio desde menino. Só tenho espaço aqui, para contar, que atravessei o Parnaíba, de barco, indo para o Maranhão, numa passagem de nome “Mescla”, ou “Amescla”, ali na altura de quem desce de Elesbão Veloso até o Parnaíba, sem fazer voltas.
No penúltimo sábado, assisti, na Academia, várias palestras sobre o rio Paranaíba e sua morte lenta. Mas, de certo tempo para cá, não tão lenta. Ouvi os discursos de Humberto Guimarães e de Elmar Carvalho. Eles falaram verdades cruas. Nos anos 1960 a gente podia tomar banho em suas “coroas”, que não corria perigo de doenças. Quantas vezes nele nos banhamos, eu, minha família, meus amigos e amigas daquele tempo! São coisas do passado, ficaram em livros, nos jornais, e pronto. O Parnaíba está triste, transformado num esgoto a céu aberto, secando, as margens sem florestas, transformadas que foram em roças de pastagem ou plantio de lavouras de subsistência. Assim, sem o lençol de suas margens, correm areias e detritos para o leito do rio e o aterram. Que maldade! Que barbaridade!
Toda a rede hidrográfica do Piauí chega ao Parnaíba já degradada. Nós não ansiaríamos um porto no mar, se houvéssemos tratado bem o Parnaíba. Agora, babau! Nem porto nem rio.
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