Antonio Miranda, poeta, professor titular da
Universidade de Brasília
O Brasil sempre foi reconhecido como pacifico,
tolerante e despolitizado. No Exterior, conhecido pelo estereotipo da
combinação do futebol com o carnaval, do erotismo e exotismo de seu
comportamento e a exuberância dos recursos naturais e meio-ambiente. Gilberto Freyre
cunhou a imagem de uma “unidade na diversidade”, de uma sociedade de “casa
grande e senzala” em que as tremendas diferenças de classe eram amenizadas
pelas relações sociais afetivas. Uma vasta extensão territorial onde a língua
aproximou e forjou o país mesmo antes da abertura de estradas, da conquista do
interior — em que se insere o desenvolvimento tardio da Amazônia e do
Centro-Oeste. Roberto da Matta encontra na sociedade brasileira, em confronto
com outros povos, um comportamento ambivalente, em que somos mais liberais na
rua do que dentro de casa. Vem em nossa configuração ou estereotipo a herança
colonial, o patriarcalismo, a capacidade de apaziguar os conflitos, o
“jeitinho” brasileiro. Numa redução simplista, partimos da colonização
portuguesa, passando pela miscigenação racial oriunda da escravatura e,
posteriormente, pela imigração de europeus e asiáticos, conformando uma
idiossincrasia mais sincrética, um hibridismo de valores e crenças. Um fascínio
pela cultura e língua francesa no nosso processo civilizatório e, nos últimos
sessenta anos, a adoção — não necessariamente a eleição — da cultura
norte-americana como modelo. Um país de cultura “mestiça”, não apenas pelos
cruzamentos raciais, mas sobretudo pela amálgama de costumes e valores, apesar
das enormes diferenças regionais, do baixo nível educacional. Apesar dos
avanços mais recentes graças à escolarização universal e à ascensão social de
milhões de pessoas à cidadania e a condições mais razoáveis de vida, mas sem
vencer ainda as tremendas desigualdades sociais. Stefan Zwaig cunhou a legenda
de ser o Brasil “o país do futuro” e Michel Sèrres derivou a sua “filosofia
mestiça” inspirada no hibridismo e no nosso ecletismo.
Como explicar os levantes de junho de 2013 em
todo o país e, em escala mais reduzida, nas periferias e no interior? Reflexo
da melhoria dos níveis de educação, da inclusão social, das mudanças
significativas no poder aquisitivo e consequente acesso aos bens de consumo?
A perplexidade do governo e da classe política
diante das passeatas, das manifestações públicas de repúdio às práticas da
corrupção e da violência, denúncia de gastos públicos sem transparência,
inflação crescente. Custos de obras públicas exorbitantes, entre elas as das
copas das confederações e a mundial, enquanto é flagrante a precariedade das
infraestruturas: estradas, hospitais, escolas, formação de recursos humanos e
segurança pública. As críticas aos partidos políticos tradicionais, o rechaço
às práticas de negociação com os partidos da base de governo, o loteamento de
cargos públicos, a exoneração constante de ministros e servidores públicos que
logo, quase sempre, são renomeados para outras funções. Impunidade. Lentidão da
justiça. A forma de governar por medidas provisórias.
Os cientistas políticos, os jornalistas mais
especializados e os economistas, durante os meses do julgamento do Mensalão, no
Supremo Tribunal Federal, foram enfáticos em apontar para a enorme reserva de
manobra que o governo tem para o aliciamento de pessoas carentes mediante programas
assistenciais. O baixo nível de desemprego e uma elevação, ainda que
discriminatória, do “índice de desenvolvimento humano” explicariam que não
houve, durante o julgamento do referido Mensalão, protestos nem uma comoção
nacional. Mas certamente que o processo causou um tremendo impacto na
consciência das elites e das camadas mais intelectualizadas, formadoras de
opinião por excelência, e que o “alheiamento” das classes mais despossuídas não
significa necessariamente desconhecimento da gravidade do que estava sendo
julgado.
Por que os brasileiros, a exemplo do que era a
nossa tradição, não saiu pintando as ruas, colocando bandeiras nas janelas, em
unívoca e uníssona torcida por todo o país desde a abertura da Copa das
Confederações? Como explicar o constrangimento das manifestações
multitudinárias na inauguração do Estádio Nacional de Brasília, ameaçando o
acesso dos torcedores ao jogo entre Brasil e Japão? E a vaia durante a fala da
Presidente Dilma Roussef, de repercussão internacional? Por que, em vez de
celebrar a primeira vitória da seleção de futebol enquanto, ao contrário das
vezes anteriores — que sempre foi de carreatas e fogos de artifício — parte
considerável da população saiu às ruas das principais cidades para protestar
contra o aumento das passagens dos transportes públicos, questionando os altos
custos das obras nos estádios, levantando as questões da precariedade dos
serviços públicos de saúde e educação, numa pauta difusa, sem lideranças
explícitas? Quem leu “A rebelião das massas”, de Ortega e Gasset, sabe que as
manifestações incluem diferentes grupos, dos mais bem intencionados até os
radicais, que atraem o lumpem, os que vivem nas ruas e os marginais sem voz e
sem direitos e que, a qualquer pretexto ou falta de monitoramento, descambam
inevitavelmente para os excessos pelos recalques sociais.
Por dias seguidos, entre passeatas pacíficas,
tentativas de invadir prefeituras, saqueando lojas, culminando com a “tomada”
do Congresso Nacional, onde, mesmo sem invadir o prédio, os manifestantes
enfrentaram a polícia e subiram as rampas e o telhado entre as cúpulas do
Senado e da Câmara dos Deputados, ao lado do Palácio do Planalto, gritando
palavras de ordem e exibindo cartazes com reivindicações contra os altos
salários dos políticos, pedindo transporte gratuito, exigindo respeitar o
direito do Ministério Publico de fazer investigações, e até questões
relacionadas com os direitos dos indígenas e mais verbas para a educação. Sem
aceitar o apoio de partidos políticos tradicionais, repudiando a presença de
sindicatos e não admitindo a presença de políticos em suas fileiras. Sem
lideranças explícitas, convocados pelas redes sociais. Tudo isso depois de
manifestações exemplares — no sentido cervantino do termo — da Primavera Árabe,
das insurgências na Rússia e os levantes na Turquia a pretexto de impedir a
reurbanização de uma praça pública, mas que revelam repúdio ao autoritarismo
crescente de um governo que começa a erodir o laicismo e o sentido plural da
composição do governo. Tendo como pano de fundo os antecedentes do derramamento
de informações sigilosas de governos pelo Wikileaks e as denúncias de
monitoramento de arquivos privados dos meios de comunicação pelo serviço
secreto do governo do Obama.
A explicação estaria na mudança de paradigmas
e nas transformações dos meios de comunicação pelas tecnologias. Partimos de um
modelo “de poucos para poucos”, em tempos mais remotos, quando poucos autores
escreviam e eram ouvidos ou lidos por uma público muito limitado, mesmo depois
do advento da tipografia. Seguiu-se um modelo “de muitos para muitos” com os
avanços da educação e da pesquisa em escala mundial, sobretudo com o surgimento
de meios reprográficos, da comunicação de massa, da crescente segmentação dos
meios de comunicação abertos e por cabo, da imprensa alternativa e dos meios
mais interativos de acesso ao conhecimento, sem menosprezar o avanço da
multivocalidade, da transdisciplinaridade e outros meios de criação coletiva e
compartilhando mais solidário dos acervos informacionais. Sem esquecer das
tendências para um compartilhamento mais aberto mediante dispositivos como o
Creative Commons e Science Commons, em favor da flexibilização dos direitos
autorais, na Era Pós-moderna. Mas estamos agora em outra etapa, na
Hipermodernidade, em que a hipermidiação, a mobilidade dos meios de
comunicação, a atualização em tempo real dos conteúdos informacionais, a
simultaneidade e ubiquidade dos acessos aos repositórios e, acima de tudo, a
possibilidade de comunicação multilateral dos usuários através de redes
sociais, mudaram o cenário completamente. Pari passu com o distanciamento do
público com as instituições tradicionais como os partidos políticos — criando
um significativo descrédito no sistema de representação política, assim como
das religiões e do ensino tradicional. É o advento do modelo “de todos para
todos” em que, em escala crescente, as pessoas produzem, compartilham e
retransmitem textos, imagens, músicas, ou produtos híbridos no sentido da AV3-
animaverbivocovisualidade que, graças à convergência tecnológica dos processos
digitais e virtuais, amalgamam textos, voz, imagens e animações por processos
mais criativos, graças a aplicativos de acesso generalizado.
É nesse contexto que acontecem os levantes por
todo o Brasil em junho de 2013, sem uma noção clara de seus desdobramentos, com
a perplexidade dos próprios insurgentes assim como das classes políticas,
sindicais, da justiça e dos meios de comunicação do país. E agora, José? Quo
vadis?
Brasília, 19.06.2013