Wednesday, March 05, 2008

A COR DO SANGUE E O ESPELHO DE NATARAJA


Antônio Cardoso Neto

O sol acabara de se esconder por detrás das seteiras de uma das torres do Forte Vermelho. Um indiano de uns trinta e tantos anos, trajando uma túnica de algodão azul-turquesa e trazendo na cabeça um barrete negro, caminhava de um lado para o outro na longa calçada de pedra que circunda a antiga fortaleza. Gesticulava e parecia resmungar por entre os dentes.
— O pai da Índia é o próprio Brahma. O velhote é o pai do Paquistão, isto sim!
Continuou a andar e a gesticular em torno da grande cidadela com suas pedras ainda mais enrubescidas pelos últimos raios de sol daquela quinta-feira.
— A Grande Índia é mais que a pátria de todos os indianos, sejam eles hindus ou não. É divindade de adoração dos hindus!
Nitidamente transtornado, parecia mastigar as palavras, ditas em hindustâni, com um leve sotaque marata.
— Profanaram nossa língua, filha dileta do sânscrito. Mancharam o devanagari com rabiscos árabes e transformaram o hindi sagrado em urdu.
Afastou-se da calçada de pedra e começou a caminhar sobre o gramado amarelo como palha de arroz. O ar seco e ligeiramente frio de janeiro obrigou-o a acelerar o passo. Continuava a gesticular.
— E não foi só aos muçulmanos que o velho traiçoeiro favoreceu. Os devotos do pérfido Sidarta Gautama também arrancaram a Birmânia e o Ceilão do seio da nossa venerada nação. E a sublime Caxemira? Até aqueles párias chineses levaram um pedaço da carne da grande e amada Índia. Tudo culpa da deslealdade daquele velho demagogo, que tem enganado a todos com seus discursos tão esfarrapados como seus andrajos. Os malditos cristãos ingleses pelo menos respeitaram a integridade da pátria querida. O velho merece ser castigado até mais que os ingleses.
De súbito, parou, olhou para a muralha encarnada e sorriu.
— Amanhã, por volta desta hora, a alma do traidor já terá reencarnado no filhote de uma cadela sarnenta, na casa de algum intocável... Grande Alma... pois sim!
Ao passar em frente à igreja anglicana que fica atrás do Forte, lembrou-se de um místico meio charlatão, tenente do exército imperial britânico, que conhecera muito tempo antes. Nunca se esquecera de quando ele lhe perguntou seu nome e apelido e, por algumas rúpias, juntou as letras de seu nome, Shri Nathuram Godse, com as de seu apelido, Nath, e formou o anagrama higher than Nostradamus, sugerindo que ele, Nath, era maior que um profeta “bastante conhecido no ocidente”, segundo as palavras daquele soldado trapaceiro. Embora se recusasse a acreditar em vaticínios alheios ao hinduísmo, Nath tentava, naquele momento, levar as palavras do impostor a sério para ver se podia antever o que se seguiria ao ato que consumaria no dia seguinte. Mas não conseguia, por mais que tentasse. Nada lhe vinha à mente, além da mira, da acuidade visual, do tato com o gatilho e da rapidez da ação. Atormentava-o a idéia de vir a falhar na missão que lhe coubera cumprir.
Assim que anoiteceu, caminhou até a orla, sentou-se em uma enorme laje de pedra sobre a qual os peregrinos costumavam colocar seus pertences, e ficou olhando a superfície pálida do remanso na margem direita do Yamuna.
Observava o reflexo das estrelas na água, quando os vórtices formados pelo movimento dos remos de um barco que passava por ali retorceram o espelho d’água, revolvendo os astros nele espelhados, fazendo com que, no meio do rodopio daquelas constelações espectrais, Nath vislumbrasse a dança de Shiva. Os guizos nos tornozelos do deus sussurraram aos seus ouvidos: “... depois da morte de Bapu...”.
Nath esfregou os olhos, balançou a cabeça, beliscou o braço e deu um leve tapa no rosto para se certificar de que não sonhava. Quando voltou a olhar para o rio, o redemoinho já havia passado, e a água voltara a refletir o luzeiro ancestral das estrelas a flutuar num líquido e balouçante véu negro. A oscilação do manto d’água foi se amortecendo até sobrar somente um ligeiro tremor, deixando as constelações nítidas de novo.
Nath olhava, absorto, aquelas fagulhas que cintilavam na água irem se incandescendo lentamente até se transformarem em archotes carregados por maometanos, que, aos gritos, ateavam fogo a choupanas de hindus miseráveis. Viu centenas de abutres devorando as vísceras de soldados indianos e paquistaneses mutilados em um vale ermo da Caxemira, e uma multidão de crianças escaveiradas com os olhos esbugalhados, boiando em um lamaçal de Bengala. Em um círculo vermelho com fundo verde, enxergou citações corânicas escritas em caracteres bengalis. Depois, avistou hordas de tâmeis escuros estraçalhando, com seus facões, multidões de cingaleses indefesos; malabarenses carregando um estandarte escarlate com uma foice e um martelo entrecruzados; uma elegante senhora grisalha em trajes hindus sendo metralhada por dois siques de turbante carmesim; o filho da senhora grisalha dilacerado por uma drávida de cabelo escorrido sobre os ombros; um senhor sindi com o pescoço destroncado, pendurado em um cadafalso de madeira; a bela filha do senhor sindi sendo deportada à força para a Inglaterra; um acidente aéreo com um tirano de bigode retorcido e olhos de sampacu; a bela filha do senhor sindi, acenando para a multidão, defronte a uma mesquita gigantesca; mais uma deportação da bela filha do senhor sindi; um ditador militar islamita com uma peruca ridícula; a bela filha do senhor sindi assassinada com um tiro no pescoço seguido pela explosão de um homem-bomba; estrangeiros árabes, afegãos, persas e turcomanos invadindo o Baluquistão; um foguete, com um crescente verde desenhado na couraça, sendo arremessado sobre uma cidade às margens do Ganges, despedaçando-a por inteiro; outro foguete, com o desenho de uma roda de fiar, sendo lançado sobre os vilarejos do vale de um afluente do Indo, reduzindo-os a estilhaços. O clarão estrondoso de um imenso cogumelo de fogo fez com que Nath se sobressaltasse e esbarrasse no espelho líquido, distorcendo mais uma vez aquele reflexo do firmamento, redemoinhando o espectro do universo. Shiva dançava novamente.
Nath levantou-se repentinamente, e ficou olhando aturdido para o movimento das águas, até elas tornarem a se amansar. Sacudiu a poeira da túnica e das calças, e saiu às pressas rumo ao Forte Vermelho, onde tomou um auto-riquixá em direção aos arrabaldes de Delhi.
Duas horas depois, já havia se esquecido do que parecera ter visto nas margens do Yamuni. Na varanda de um bangalô suburbano, sentado sobre um tapete desbotado estendido no chão, Nath colocava calmamente as balas no pente de uma pistola semi-automática italiana. Atrás de uma das pilastras da varanda, indiferente ao que acontecesse no dia seguinte, a lua despontava como a unha de um tigre, na direção onde, durante séculos, ficara a porção leste de Bengala, mas que agora se chamava Paquistão Oriental.

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