Tuesday, May 06, 2008

Dois Contos...


KARLUV MOST

Percorria aquela rua escura e estreita em meio ao nevoeiro. A noite já ia alta. O burburinho dos últimos bares e tavernas ainda se ouvia ao longe. De súbito, aquela figura de mulher, ainda adolescente, aproximou-me daquele praça, da Catedral de Tyn, circundou a Prefeitura, prédio imponente com seu histórico relógio astronômico. Não sei se o último metrô ainda havia. A estação Staromestská certamente estaria fechada. O caminho a ser seguido então passava pela Ponte Carlos, rio Vltava. O seu rosto alvo e o verde de seus olhos resplandeciam na atmosfera fria. Encostado à mureta, vi-a atirando-se dali, rodopiando no ar feito folha seca no outono e por fim pousando junto aos outros pombos, lá embaixo, próximo aos faróis que iluminam a ponte, ao lado da velha eclusa.

Marcos Freitas. Do livro “na curva de um rio, mungubas”, Ed. CBJE, Rio de Janeiro, 2006.

STULTIFERA NAVIS

“só usa a razão quem nela incorpora suas paixões”. Raduan Nassar. Um Copo de Cólera.

Ela desceu de sua nave reluzente no Pouso Alto, paralelo 14, Chapada dos Veadeiros. Seus lábios descreviam sua fúria interior. Seus pensamentos espiralados removiam do ar a força de destruição avassaladora. O vácuo da incompreensão era o olho do furacão.

Em mil pedaços, quase reduzidos a pó.

Sua respiração desenfreada provocava estremecimentos. Seus dedos em riste, como a ditar ordens a milhões de soldados imagináveis de um batalhão invisível. Pobre general de exército algum.

Lá fora, pela janela, da pequena varanda, descortinava-se um céu cinzento. A grama removida pelos tratores e máquinas trazia de volta o vermelho da terra do cerrado. Tortuosos caminhos. Tortuosas e retorcidas árvores de uma discutível nascente: olho d´água. Encharcadas terras. Saturadas de tudo.

Mudo, lastimei mais uma vez sua incompreensão. Não compreenderia jamais meus sentimentos tão puros. Nunca mais presente algum. Versos, então, nunca mais. Ecos de perplexidades evadiam em todas as direções, enquanto o cheiro de incenso enchia todo o ar do quarto. Cinzas enterradas em pedra furada.

Marcos Freitas. Da Antologia de Contos Fantásticos, Edição Especial - Volume 9, Ed. CBJE, Rio de Janeiro, 2007.

Para adquirir o livro "na curva de um rio, mungubas":
http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=9041236&sid=97511819711128520958824711&k5=33C21440&uid=

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