Antônio Cardoso Neto
As legiões estão dispostas em retângulos com mil e trezentas almas de comprimento por novecentas de largura. E o produto de um mil e trezentos por novecentos é o número de almas de cada retângulo; e cada retângulo não tem mais que um mil e trezentas vezes novecentas almas. E se chamam
quadrilaterus animae, esses retângulos. E são mais de noventa mil retângulos, perfazendo os quase cento e sete milhares de milhões de almas que passaram pela Terra. Não é inferior a noventa mil o número de retângulos; e não é superior a cento e sete milhões de milhares o número de almas. Igual é o número de anjos da guarda, cada um deles sustentando-se no ar sobre cada uma das almas.
A não ser por umas nódoas que algumas têm a mais, outras a menos, são as almas todas muito semelhantes, não havendo como distingui-las por sexo, idade com que teriam deixado o mundo, época ou local de sua vida mundana. Tampouco faz sentido tentar precisar o tempo em que se encontram ali, por situarmo-nos depois do fim dos tempos. Uma infinidade de querubins toca cítaras, harpas e outros instrumentos aparentados com as liras, enquanto as almas esperam, impassíveis. A escala pentatônica em que tocam, decorrente da evidente proibição do trítono (ou
diabolus in musica), resulta em frases melódicas intermináveis, desprovidas de tensão e, conseqüentemente, sem qualquer necessidade de resolução.
Um arcanjo, saído de trás de uma nuvem em forma de cogumelo, enxota os querubins com gestos das mãos, bradando “xô, xô”, com um timbre parecido com o rufar de um tarol. À revoada de querubins, segue-se a entrada de uma quantidade inumerável de serafins que, portando trombetas de bronze, perfilam-se em dois grupos, um em cada lado de uma nuvem do tipo nimbo-cúmulo. As trombetas bramem e a nuvem se descortina, lançando um facho incandescente que inunda os mais de noventa mil retângulos d’almas. Assim que os olhos das almas vão se acostumando à luz ofuscante, começam elas a perceber que a fonte luminosa é um olho castanho, dentro de um triângulo eqüilátero. Algumas almas entram em pânico e começam a cochichar entre si: “é Ele, é Ele”. Então, uma voz retumba dentro da nuvem e faz com que tudo se cale e estremeça.
----- “Sim, sou Ele, oh, vós que cochichais!”, diz Ele. E arremata: “Não vos esqueçais de jamais chamardes Meu nome em vão!”
Então, uma pomba branca, trazendo um galho de oliveira no bico, pousa no vértice superior do triângulo, e arrulha duas vezes. E são duas, nem mais nem menos que duas, as vezes que a pomba arrulha. Algumas almas cochicham: “a pomba-gira, a pomba-gira!”. Pela expressão do Olho, umas almas concluem que Ele dá de ombros aos comentários. E Sua voz estrondeia novamente.
----- “Por terem sido desalmados, não estão aqui, nem em lugar nenhum, aqueles que negaram a Minha existência. Se eles não creram em Mim, também não creio neles, e pronto! Antes de iniciarmos o julgamento, informo àqueles que pensavam em ir para o Nirvana ou para o Valhala, que quebraram a cara! Eles que vão procurar o Nirvana ou o Valhala noutro lugar. E já! Mas, aos siques será dado um lugar onde poderão deixar os cabelos crescerem por toda a eternidade. Finalmente, reservo aos hindus bela pastagem, onde viverão e ruminarão como criaturas sagradas para sempre.”
----- “Devo aqui fazer uma autocrítica com relação ao decreto que pôs fim ao Limbo”, continuou. “Como não estou disposto a julgar trogloditas, índios velhos, animistas, recém-nascidos, xamanistas, hippies, pagãos antediluvianos e inocentes úteis, fica reestabelecido o Limbo, para onde devem voltar os que lá estavam.”
E continua Deus.
----- “Depois destes acertos inicias, serão julgados apenas os monoteístas. Advirto-vos de que serei particularmente rigoroso com os trocadilhistas, e implacável com os humoristas.”
----- “E quanto a nós?”, lamentam-se os anjos da guarda que perderam as almas que estavam sob suas custódias. “O que será de nós?”
----- “Depois daremos um jeito!”, troveja Ele.
De repente, um fedor sulfúreo invade a atmosfera, e surge, do nada, um burocrata com um crachá no qual está impresso o número novecentos e noventa e nove, acompanhado do diabo em pessoa. O diabo dá um tabefe na cabeça do burocrata e mostra a ele que seu crachá está de cabeça para baixo. O burocrata conserta rapidamente o crachá, deixando cair uns carimbos e um mata-borrão.
----- “Como tendes passado, oh, Déspota Onisciente?”, diz o diabo, tirando o chapéu tricorne com a mão direita e, com o antebraço esquerdo encostado na barriga, curvando-se em uma mesura exagerada.
----- “O que queres tu, criatura repugnante? Como ousas interferir no julgamento derradeiro?”, ribomba Ele.
----- “Vim apenas pelo que me pertence”, retruca o diabo. “Não houve isonomia e liberdade de competição. Foi uma concorrência desleal e nos foi exaustivo competir com Vossos caixeiros viajantes. Enquanto aos seres bajuladores que Vos cercam concedestes elegantes asas de alvas plumagens, dotadas da mais perfeita aerodinâmica, o que destinastes a mim e aos meus, oh, Tirano Onipotente? Nada mais que sombrias membranas iguais às dos pterossauros que afogastes no dilúvio e dos quirópteros, com as quais foi-nos forçoso adejar continuamente para que pudéssemos flutuar sobre os potenciais pecadores, enquanto seus anjinhos pairavam sobre eles sem o menor esforço.”
----- “Proíbo-te de Me acusares de Tirano. Dei-te toda a liberdade para que agisses como desejasses na captura das almas que mais te conviesses”, estrondeia Deus.
----- “Ah, essa é boa! Como podeis falar em livre concorrência, com esse Vosso transtorno obsessivo-compulsivo de serdes um
voyeur onipresente? Fui espionado ininterruptamente do Gênese ao Apocalipse, Seu velho bisbilhoteiro”, diz o diabo.
----- “Alerto-te, pela última vez, que não Me trates assim. Exijo tratamento respeitoso, elegante e diplomático”, grita o Altíssimo.
----- “Então, que assim seja, oh, Criador do Céu e da Terra. Indago-Vos, Senhor, por que razão colocastes as almas em retângulos, se não há mais gravidade? Por que não amontoá-las em um hexaedro com, no máximo, umas cinco mil almas de aresta, e, destarte, economizardes espaço?”
----- “Sei lá! Criei a música, mas foste tu, com o propósito de torná-la complicada, que inventaste a matemática. Se o problema é este, que seja feita a tua vontade e se faça o
cubus animae, oh, espírito do mal”, trona Deus, enquanto as almas, cada qual com seu anjo da guarda, formam um cubo de quatro mil, setecentas e vinte e oito almas de aresta. E são exatamente quatro mil, setecentas e vinte e oito almas que formam a altura, a largura e o comprimento do cubo. E o número de almas é exatamente igual a quatro mil, setecentos e vinte e oito elevado ao cubo. E vê Deus que o cubo é bom, e o abençoa, pois ele é perfeito e contém todas as almas que estão para serem julgadas.
----- “Comecemos então o julgamento”, esbraveja Deus. “Certamente não te oporás, oh, Príncipe das Trevas, se aos zoroastristas, embora monoteístas, for destinado o tempo que quiserem para adorarem o fogo nos quintos dos teus infernos. No que diz respeito aos muçulmanos, estes disporão de espaçosas mesquitas para ficarem eternamente aboiando e adorando caligrafia. Aos judeus darei a Terra Prometida, e aos cristãos, a Minha agradável companhia, que tal?”
----- “
Data venia(*), oh, Jeová”, argumenta o diabo. “Dentre os cristãos, há os que protestaram contra o impedimento da usura e do mercantilismo e se opuseram ao Vaticano, aos quais deveríeis, por princípio de tratamento isonômico, destinar tratamento similar ao que reservastes aos judeus. Quanto aos demais cristãos, tanto ortodoxos quanto católicos romanos, não podereis contradizer a sina que impusestes aos politeístas, uma vez que o panteão de santos e a enorme quantidade de templos a eles erguidos pelos católicos romanos e ortodoxos os qualifica como semi-deuses aos quais esses fiéis dedicam verdadeira adoração. Sede coerente, oh, Pai de Todos.”
----- “Não Me cobres coerência! Não me venhas com tuas artimanhas! Incoerente és tu!”, vocifera o Criador de Todas as Coisas.
----- “Incoerência é acusardes-me de incoerente e, ao mesmo tempo, proibirdes-me de cobrar-Vos coerência.”
----- “Não Me cobres coerência, já disse!”
----- “Que seja! Além do mais, já no princípio dos tempos havia Gabriel Vos aconselhado que contivésseis Vossa ira e colocásseis Vossos desafetos no Purgatório. Vossa maior incoerência é terdes condenado tantas e tantas almas ao fogo eterno... ouvi, oh, Javé, fogo ETERNO, dissestes... o que as torna impossibilitadas de serem novamente julgadas, mesmo no dia do Juízo Final, que hoje se nos apresenta”, completa o diabo.
Subitamente, o Olho dá três piscadelas e olha para cima. Do topo do triângulo, escorre um líquido cremoso de coloração cinzenta com manchas esbranquiçadas. A seguir, o Espírito Santo bate as asas e alça vôo.
----- “Quá! O que esperáveis?”, exclama, cofiando a barbicha, o diabo. “As duas acepções da escatologia são a mesma coisa!”. Dito isso, escafede-se junto com o burocrata, arrastando atrás de si a maioria das almas, deixando o Olho piscando nervosamente, e as almas restantes, os anjos da guarda, os serafins, os arcanjos, os querubins e demais criaturas celestiais atônitos, imersos em um baita cheiro de peido.
(*) Como sempre se suspeitou, o diabo, o advogado do diabo e os demais advogados são todos a mesma pessoa.
***