Intervozes
Estado brasileiro processa militante e criminaliza
rádios comunitárias
Jerry de Oliveira, do Movimento Nacional de Rádios
Comunitárias, é acusado de resistência, ameaça, calúnia e injúria contra
agentes da Anatel. Processo é tentativa de calar a voz do movimento social
por Intervozes — publicado 04/09/2013 16:28, última
modificação 05/09/2013 12:57
Jerry de Oliveira
Por Bruno Marinoni*
- Gostaria de expressar minha alegria por estar
aqui discutindo um tema tão relevante como o das rádios comunitárias. Eu mesmo
já tive uma – disse o deputado.
- O senhor teve uma? – perguntou Jerry de Oliveira.
- Sim.
- Então, não era comunitária!
(riso geral)
Este diálogo foi presenciado por mim e tantos
outros durante uma audiência pública para discutir a digitalização do rádio,
realizada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Expressa um pouco da
coragem, responsabilidade, clareza e irreverência de Jerry de Oliveira,
militante paulista do Movimento Nacional de Rádios Comunitárias (MNRC), que
hoje, assim como diversos lutadores sociais que se organizam para resistir ou
enfrentar a reprodução das desigualdades, é alvo de um processo criminal.
Jerry é acusado de resistência, ameaça, calúnia e
injúria contra agentes da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) ao
interceder a favor das rádios comunitárias em uma ação de fiscalização da
agência. Após receber aviso de que haveria um processo de “fechamento” de uma
emissora, Jerry flagrou agentes da Anatel e policiais militares na casa de uma
das coordenadoras da emissora sem mandado judicial ou autorização dos
residentes para entrar. A moradora estava de camisola, havia sido acordada e
surpreendida pela Anatel. Diretor da sessão paulista da Associação Brasileira
de Rádios Comunitárias (Abraço), Jerry teria bloqueado a saída dos agentes da
fiscalização e da polícia, informando que não poderiam levar o equipamento da
rádio sem os documentos legais necessários e sem o devido lacre que os
protegeria de adulteração e danos.
No mesmo dia, os agentes da Anatel cumpriram
mandado de busca e apreensão em outra rádio comunitária. Ali, o procedimento se
deu dentro da "regularidade" e eles foram recebidos por um dos
diretores da emissora, acompanhado do advogado. A equipe da rádio acredita, no
entanto, que a tensão inerente a esses processos induziu a um aborto da esposa
do dirigente da emissora, grávida à época. Jerry procurou então o responsável
pelas operações da Anatel na região e a recepção, feita por outros funcionários
da agência, foi em clima de troca de provocações. Em decorrência desses dois
episódios, Jerry foi acusado pelo Ministério Público. O promotor que trabalha
no caso, Fernando Filgueiras, pede a condenação e pena máxima para o militante,
o que poderia resultar em 5 anos e 2 meses de regime fechado.
A Artigo 19, organização internacional de defesa da
liberdade de expressão, se manifestou no processo, afirmando que as acusações
“tratam-se de medidas desproporcionais e antidemocráticas, que dão ensejo à
autocensura”.
A atuação do Estado brasileiro contra as emissoras
comunitárias vem sendo denunciada há um longo tempo pelo movimento que luta
pela democratização da mídia no país. Aqui, a prática da radiodifusão
comunitária sem autorização do Ministério das Comunicações é considerada crime,
passível de privação de liberdade. A Convenção Americana de Direitos Humanos,
da qual o Brasil é signatário, afirma no entanto que a responsabilização por
esta prática deveria ser feita, no máximo, no âmbito civil ou administrativo.
Em março deste ano, a Artigo 19 e a Associação
Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc) denunciaram o problema à Comissão de
Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), considerando-o
uma violação da liberdade de expressão e do direito humano à comunicação no
Brasil. Casos de invasão de emissoras (ou mesmo casas) e de apreensão de
equipamentos por agentes da Anatel, acompanhados de policiais, sem ordem
judicial, são denunciados de forma constante. Cerca de 11 mil rádios
comunitárias foram fechadas nos últimos oito anos no Brasil.
A realidade é que a política definida pelos
governos e legisladores brasileiros para a radiodifusão comunitária tem sido
marcada pela repressão. Em vez de fomentar o desenvolvimento do setor,
garantindo a liberdade de expressão e a efetivação do direito à comunicação
dessas comunidades, o Estado brasileiro opta por sufocar essas vozes. A própria
legislação e os entraves burocráticos empurram para a ilegalidade os
comunicadores populares, depois rotulados de "foras-da-lei" pelas
rádios comerciais, que combatem ferozmente a “concorrência” daqueles que querem
fazer da comunicação mais do que um mercado a ser explorado.
O processo contra Jerry de Oliveira não resultará
no fim da luta e mobilização das rádios comunitárias no Brasil, unidas para
defender seu companheiro. Mas sem dúvida é uma tentativa de calar um dos
setores mais combativos das organizações populares de nosso país. Sua possível
condenação não será apenas mais uma prova de que as comunicações no Brasil
continuam sob controle do poder político e econômico das grandes emissoras. Mas
também a comprovação que o Estado brasileiro, através dos seus mais diferentes
braços, viola o direito à liberdade de expressão de seus cidadãos e cidadãs.
*Bruno Marinoni é repórter do Observatório do
Direito à Comunicação e doutor em sociologia pela UFPE.
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