Marcos Airton de Sousa Freitas
Brasília / DF
Bolas de gude
"I balanced all, brought all to mind". W. B. Yeats.
O crepitar do dia filtrava entre as montanhas os últimos fios. O vento frio soprava, levemente, naquele casarão estilo colonial. Por sobre a serra, o imenso cafezal a perder de vista. Dona Clarinda deixou o portão para trás e ganhou a rua. O tinir de seus passos esvaiam-se na bruma.
Iria ter com o frei Teobaldo. Trabalhando, ardorosamente, na organização da festa da paróquia, planejava ter corais no adro da Igreja. Certamente, uma festa belíssima.
Dona Clarinda, beata vigorosa da Igreja da Matriz, estava a par de todos os acontecimentos religiosos da cidadezinha. Havia estudado no Internato das Freiras. Aprendera francês e alemão. Seu jardim era considerado o mais bonito daquele rincão. Suas orquídeas, copos-de-leite e samambaias eram comentadas até na Capital Federal, de onde vinham ilustres visitantes, geralmente com problemas de saúde, deleitarem-se com o clima agradável e o chá de colônia.
O capitão Campelo era uma figura singular. Bastante respeitada. Testa larga. Olhar profundo saltando a frente de um crânio ovalado, circundado por cabeleira crespa e grisalha. Densos bigodes. Cachimbo. Ombros largos. Corpo atlético, apesar da idade avançada. Grossas veias lhes saltavam das mãos e braços.
Homem culto. Político influente. Tinha participado da Política do Encilhamento. Pertencente à elite burguesa, amargava, agora, a crescente decadência do café.
Minha avó, filha de escravos, trabalhava como cozinheira naquele velho casarão. E eu, praticamente, passava o dia todo lá.
Certa manhã, a meninada e eu jogávamos bolas de gude. O triângulo estava cheio. Rômulo, neto de Dona Clarinda, deveria jogar. Assim o fez.
- Bilou.
- Não bilou.
- Pegou de casquinha.
- Não tecou, não.
- Bilou, sim.
- Mas, não valeu. Você fez mãozona.
- Não fiz, não.
Daí, a confusão estava formada.
- Devolva minhas bilas. Era no brinca.
- Nada disso. Era à vera.
Logo eu que era conhecido como papa-tudo. Ganhava todas. Não poderia ser. Teria que ganhar. A raiva me veio à cabeça. Avancei sobre Rômulo e a briga começou. Rolamos pelo chão e a garotada, em volta, gritando, ora torcia por um, ora pelo outro.
Havia brigado. Como castigo teria que ficar ali. Parado. Aquele canto de parede parecia não ter fim. Duas estradas encontrando-se no infinito. Acima, o teto. Única visão permitida.
De súbito, ocorreu-me uma idéia. Poria fogo naquele casarão. Tudo muito simples. Verteria o querosene do lampião e atearia fogo. Sendo os móveis e assoalho de jacarandá e de mulungu, em breve, minha vingança estaria consumada.
Assim que todos deitaram, dei início ao programado. Em seguida, corri. Corri. Corri. Os cachorros latiam. Corri. Corri.
Ao longe, o imponente casarão ardia em chamas. Gritos e algazarra. Cheiro de fumaça e cinzas por toda parte. Gemidos. Continuei a correr. Corri. Corri. Depois, muito cansado, caí na relva.
- Acorda, já é tarde. O dia vai ser longo. Temos que falar com o prefeito. A festa do centenário da cidade tem de sair.
- Ah, estou indo. Ora, bolas.
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