Friday, April 25, 2008

AS CIGARRAS E AS FORMIGAS



Antônio Cardoso Neto

Eis que ao lado de um extenso e agitado formigueiro, erguia-se frondoso jacarandá, cuja basta copa sustentava um galho que servia de palco a uma estridente cigarra. Deu-se que num determinado momento, enquanto o desentoado inseto cantava sua estrepitosa melodia, o chão sob a árvore cedeu e o vicejante jacarandá veio abaixo, com tremendo estardalhaço, arrastando consigo a ruidosa cigarra. Bastou-lhe ter recobrado os sentidos, para que o indignado inseto esbravejasse:

--- É nisso que dá confiar na firmeza do solo, com essa quantidade de formigas que assolam o país!

E completou:

--- Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil!

Por estar vedado o uso de notas de rodapé, o autor se vê compelido a interromper a narrativa para informar que, a partir deste ponto, compromete-se a pôr fim a essa mania, que sói ocorrer nas fábulas, de colocar os adjetivos sempre antepostos aos substantivos. Dito isso, voltemos à narração.

A partir de então, a cigarra passou a alardear pelos dezenove ventos (a aritmética das cigarras é deplorável) a necessidade premente de acabar com as saúvas. Péssimo menestrel, porém arauto competente, o cicadídeo acabou por convencer todas as outras cigarras a levarem a cabo a gigantesca e nobre tarefa.

Sabendo que as formigas, assim como os pobres, adoram açúcar, as cigarras passaram a exterminá-las por meio do envenenamento sistemático de colônias inteiras. E tanto se empenharam em tal faina, que acabaram promovendo um formicídio colossal, após o qual, quase já não se viam mais saúvas em lugar algum.

Ocorre, porém, que, além de péssimas instrumentistas, as cigarras também são muito ignorantes em assuntos correlatos à entomologia. E tanto é assim, que o formigueiro a que a cigarra indignada se referia não era de saúvas, mas sim de formigas lava-pés (por que o plural de lava-pé não é lavam-pés?), as quais, talvez por ausência de solidariedade entre si ou por algum atraso tecnológico, nem haviam tomado conhecimento do extermínio de suas primas saúvas. A bem da verdade, algumas delas até que tinham alguma noção da história do extermínio, mas sabiam que esse negócio de serem primas das saúvas é invenção de biólogos e outros naturalistas, cujas opiniões, as formigas, ao menos as lava-pés, não costumam levar muito em consideração.

Pois bem. Estava o fórmico-proletariado agregando o valor de sua força produtiva às folhas, aos bolores e aos fungos por meio dos quais a formiga-rainha, detentora dos meios de produção, extraía mais-valia e explorava o diminuto povo lava-pé, quando uma operária começou a vociferar impropérios (é possível vociferar coisas que não sejam impropérios?) contra o modo de produção das formigas e a lançar imprecações e insultos contra a tirania da monarquia absolutista.

Em meio à correição, a formiga panfletária aproveitou para convocar as outras camaradas para uma assembléia deliberativa da mais alta importância no topo de um dos galhos secos do outrora frondoso jacarandá que caíra sobre o formigueiro. A multidão de obreiras espalhou-se pelas redondezas do vasto mirmecódomo descrito no primeiro parágrafo, e pôs-se a ouvir a eloqüência da formiga revolucionária.

--- Boa tarde a todos e a todas (puro vício, pois todos sabem que não há machos no formigueiro). A classe operária talvez não tenha notado que não se vêem mais saúvas neste país. Pois saibam que elas foram exterminadas pelas cigarras, aquelas lumpenproletárias que não fazem nada na vida além de encher o saco de quem quer trabalhar neste país. Temos de tomar alguma providência neste país, antes que aconteça o mesmo com a gente (na verdade, ela disse “a formiga”, mas devemos interpretar como “a gente”, por uma questão de registro coloquial).

Uma lava-pé dedo-duro, fura-greve e puxa-saco (é bem conhecido pelos filólogos e tradutores o fato de o dialeto lava-pé fazer uso excessivo de hífens) saiu dali sorrateiramente, e, poucos minutos depois, os galhos do jequitibá (era jacarandá, mas, de agora em diante, passa a ser jequitibá, o que, na opinião do autor, não deverá alterar em absolutamente nada o desenrolar da trama) já estavam tomados por milhares de formigas-soldado. A operária aquela (o autor se julga com amplo direito de, subitamente, começar a narrar como se fosse gaúcho, e abancar a falar desta maneira peculiar) agitou as patas e gritou:

--- Sempre tem de ter um filho-da-puta dum traidor na História deste país.

Ah, pra quê? Por pior que possa ser a traição de uma formiga puxa-saco, nunca se deve chamá-la de filha-da-puta, pois, como se sabe, todas as formigas são filhas da rainha, e isso equivale a ofender seriamente a honra da nobre monarca. E foi assim que teve início um enorme tumulto entre as formigas, uma se atracando à outra, indistintamente de serem soldados ou operárias. Quem já teve a infeliz oportunidade de presenciar uma guerra civil sabe que o canibalismo é inevitável, e que o decoro e os bons costumes dissipam-se rapidamente; sobretudo quando se trata de guerra entre formigas, na qual a bagunça acaba por tomar as proporções de um gigantesco e confuso bacanal, que os entomologistas costumam chamar de suruba mirmecológica, obviamente uma orgia lesbiana e, de certa forma, clandestina, pois não é segredo que entre as formigas, abelhas e cupins, somente à cúpula é permitido copular, como se diz por aí.

De repente, eis que surgiu a formiga-rainha, fazendo com que aquela formicação (juro que não será mais cometido nenhum trocadilho até o final da história) cessasse instantaneamente. Estabeleceu-se então grande excitação entre as operárias, que exclamavam extasiadas:

--- A formiga-patroa! A formiga-patroa! A formiga-patroa!

Enrolando uma folha de fícus no formato de um cone, e usando-a como megafone, uma formiga-milico anunciou:

--- Silêncio, plebe! A nossa graciosa rainha vai se dirigir a vocês!

Sua Majestade, com a circunstância que tais ocasiões exigem, demandou calma às súditas proletárias e ordem à soldadesca, declarando-se indignada com o infortúnio que se abatera sobre a antiga e quase extinta cultura e civilização saúvas. Depois de um discurso breve, porém bastante hifenizado, a soberana mostrou-se preocupada com o destino que as cigarras haviam imposto às saúvas, e informou que declarava guerra às cigarras e aos seus eventuais aliados.

Seguiu-se um longo conflito entre as duas espécies de insetos, ao término do qual centenas de milhares de cadáveres de cigarras jaziam sobre as relvas e os campos de todos os lugares. A vitória havia sido formigável (eu tinha prometido, mas não agüentei), e após a capitulação cicadídea e a assinatura do armistício, levas de cigarras migraram em direção ao centro do país, espalhando-se buliçosamente pelo cerrado. Passaram então a habitar a região do Planalto Central, onde, desprovidas da mais elementar noção de polifonia, harmonia e contraponto, cantam em um uníssono monotônico abominável, sem que isso cause qualquer espécie ou revolta entre os habitantes locais, acostumados que já estão ao assédio das duplas sertanejas que assolam o país. Estas sim, muito mais que as saúvas.

***

Programação do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ

28.4.2008
Série Música no Fórum homenageia Franz Peter Schubert

A Série Música no Fórum recebe a pianista Nadge Breide (foto) e o flautista Eduardo Monteiro em Tributo a Franz Peter Schubert, que completa 180 anos de morte. O evento faz parte do Projeto Tributo da série Música no Fórum, cujo objetivo é divulgar, nas homenagens de nascimento ou de morte, músicas de grandes compositores. No programa, o público poderá ouvir a Sonata Per Arpeggione para flauta e piano e as Variações sobre Trockne Blume. Segunda, 28 de abril, às 19 horas, no Salão Dourado do Fórum de Ciência e Cultura, Entrada franca.

29.4.2008
Livro “Espaço e Teatro” será lançado no Fórum
O Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ receberá a arquiteta e urbanista Evelyn Furquim (foto) para o lançamento do livro “Espaço e Teatro: do edifício teatral à cidade como palco”, ed.7Letras. A obra traz uma série de ensaios sobre o teatro e o diálogo com o espaço urbano na contemporaneidade. O evento reunirá, em mesa-redonda, teóricos do teatro, da cidade, da arquitetura e da dança, alguns deles também ensaístas da obra recém-lançada. Terça-feira, 29 de abril, às 19 horas, no Salão Dourado do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.

30.4.2008
Duo Barrenechea toca obras do Prelúdio 21 no Fórum de Ciência e Cultura

O Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ recebe mais um concerto de música contemporânea, em comemoração aos dez anos do Prelúdio 21. O duo Sérgio e Lúcia Barrenechea, de flauta e piano, respectivamente, interpretará obras de compositores do grupo. A apresentação será na próxima quarta, dia 30, às 19 horas, no Salão Dourado do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. A entrada é franca. Informações: www.duobarrenechea.mus.br.

01.5.2008
Fórum em Cena abre temporada, volta ao passado e prédio vira hospício

A temporada 2008 do projeto Fórum em Cena estréia na próxima quinta, dia 1º de maio, com a peça “Estação Terminal”, da Companhia Ensaio Aberto. O texto do espetáculo, a Companhia e o próprio prédio do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, onde acontecerá a apresentação, estão ligados de forma curiosa. O escritor Lima Barreto foi internado no Hospital Geral dos Alienados em 1919, local que hoje abriga o Palácio Universitário. As apresentações serão nos dias 1º, 2, 4, 5, 6 e 7 de maio, às 20h30, no Salão Dourado do Fórum de Ciência e Cultura.

Mais informacões, acesse o site: http://www.forum.ufrj.br

Wednesday, April 23, 2008

II Curto-Circuito da Palavra

No dia 23 de Abril três poetas, Cristiane Sobral, Luis Turiba e Antônio Miranda, com suas palavras cortantes, estarão falando seus poemas no II Curto-Circuito da Palavra.

CRISTIANE SOBRAL
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1974, e reside em Brasília desde 1990. Como escritora, possui poemas e contos publicada na Antologia Cadernos Negros, edições 23, 24, e 25. Graduada como atriz habilitada em Interpretação Teatral pela Universidade de Brasília, sendo a primeira negra a ganhar o título acadêmico. Fonte: http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/distrito_federal/cristiane_sobral.html
Página da autora: http://crisobral.sites.uol.com.br/

LUIS TURIBA
Poeta e Jornalista. Nasceu em Pernambuco, em 1950, e vive em Brasília desde 1979, tendo recebido o título de Cidadão Brasiliense pelos serviços prestados à cultura da cidade. Sua estréia na poesia se deu pela publicação do livreto Kiprokó em 1977. Recebeu o Prêmio Candango de Literatura do Governo do Distrito Federal, em 1998, pelo livro-CD Cadê. A obra Bala (Salvador: P555 Edições, 2005) reúne os textos mais recentes do poeta, da qual extraímos os seguintes poemas como mostra de uma obra sempre original, instigante, criativa.
Fonte: http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/distrito_federal/luis_turiba.html

ANTONIO MIRANDA
Antonio Lisboa Carvalho de Miranda é maranhense nascido em 5 de agosto de 1940. Membro da Academia de Letras do Distrito Federal, foi colaborador de revistas e suplementos literários como o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e também o La Nación (Buenos Aires, Argentina) e Imagen (Caracas, Venezuela). Professor e coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação do Departamento de Ciência da Informação e Documentação da Universidade de Brasília, Brasil, ministra aulas e cursos por todo o Brasil e países ibero-americanos. Também é consultor em planejamento e arquitetura de Bibliotecas e Centros de Documentação. Doutor em Ciência da Comunicação (Universidade de São Paulo, 1987), fez mestrado em Biblioteconomia na Loughborough University of Technology, LUT, Inglaterra, 1975. Sua formação em Bibliotecologia é da Universidad Central de Venezuela, UCV, Venezuela, 1970. Diretor da Biblioteca Nacional de Brasília desde março de 2007.
Fonte: http://www.antoniomiranda.com.br/sobreoautor/sobre_autor_index.html

Monday, April 14, 2008

A Maior Medição de Vazão do Mundo (Foz do rio Amazonas)



"Passados quase dez meses, criei vergonha na cara e organizei os filminhos que fiz durante a medição da vazão na foz do rio Amazonas, que acabou sendo a maior já registrada com aparelho eletrônico. Editei o filme da maneira que acreditei ser a mais didática possível, e, para explicar a física envolvida na medição, fiz umas animações quadro a quadro, o que deu um trabalhão danado. Ficou muito amador, mas acho que dá para ter uma idéia de como é que acabamos medindo a vazão na foz do rio Amazonas.

Embora eu tenha participado da expedição em caráter institucional, o filme relata minha experiência pessoal. As opiniões dos tripulantes do barco foram feitas com o consentimento deles, e não retratam a opinião da instituição onde trabalho. Filmei com uma câmera pessoal e editei no meu computador de casa, após o horário do expediente, pois o filme não está dentro das normas de impessoalidade exigidas pelo serviço público.

Tive que dividir o filme em 5 partes para poder colocar no youtube, pois há limitação de tamanho. Ao todo, deu 37 minutos. Se você resolver ver os filmes, por favor, veja-os seqüencialmente, pois eles já não estão lá grande coisa, e se você vê-los numa seqüência aleatória, daí é que não vai dar para entender nada, mesmo. Quem tiver interesse, é só clicar nos links abaixo.

(ps) O filme é sonoro, e demora um pouquinho para carregar."

Aquele abraço,

Antonio Cardoso Neto.

1. http://www.youtube.com/watch?v=0jtovj7B688

2. http://www.youtube.com/watch?v=IfJypzOyMas

3. http://www.youtube.com/watch?v=FOYEiKjKoUE

4. http://www.youtube.com/watch?v=E13P-fM1ve0

5. http://www.youtube.com/watch?v=jPb9qxaOt_w


BANZEIROS
 
tuas formas esbravejam
em mim
milhões de turbilhões
de desejo
descolam meus pés do chão
desmancham meus redemoinhos
de sonhos
a canoa da vida estremece
afugentando tambaquis e matrinchãs

Marcos Freitas. Do livro: na curva de um rio, mungubas. Ed. CBJE, 2006.

Thursday, April 10, 2008

Festival VidéEau


Abertas as inscrições para concurso de vídeos sobre água
Jovens de 17 a 30 anos têm até 15 de junho para inscreverem vídeos no Festival VidéEau, organizado pelo Secretariado Internacional da Água (SIE) com o apoio institucional da Agência Nacional de Águas (ANA). Com o tema “A água, o ser humano e o desenvolvimento sustentável”, as peças devem ter, no máximo, 90 segundos e ser enviadas em MiniDV (NTSC) ou DVD (multizona).

Os três primeiros colocados receberão, respectivamente, US$ 2 mil; US$ 1,5 mil e US$ 1 mil. Os vencedores serão anunciados durante o Congresso Mundial dos Jovens, em Québec (Canadá), entre 10 e 21 de agosto deste ano. Além disso, eles estarão automaticamente pré-selecionados para a competição oficial dos Encontros Internacionais “Água e Cinema”, a ocorrerem durante o 5º. Fórum Mundial da Água, em Istambul (Turquia), em março de 2009.

Fonte e mais informações: http://www.ana.gov.br/SalaImprensa/FestivalVideEau/

The Festival VidéEau is an international competition for video clips organized by the International Secretariat for Water (ISW), in preparation for the International Water and Film Events Istanbul in 2009. It is also a part of the "Celebration of Lakes and Rivers" project, a process to raise awareness and involve young people in international citizenship and cooperation for water in Quebec and around the world. The 2008 edition invites young people aged from 17 to 30, to submit 90 second or shorter video clips on the theme "Water, People and Sustainable Development". The winners of the competition will be announced at a ceremony to be held during the World Youth Congress, taking place in Quebec, Canada, from 10 to 21 August 2008. They will also be automatically selected for the official competition of the IWFE.

Fonte: http://www.worldwatercouncil.org/index.php?id=342

Wednesday, April 09, 2008

A alocação de água como instrumento de gestão de recursos hídricos: experiências brasileiras

Alan Vaz Lopes & Marcos Airton de Sousa Freitas

RESUMO: Embora os mecanismos de alocação de água adotados historicamente no Brasil sejam caracterizados pela forte intervenção do poder público, as políticas estaduais e nacional de recursos hídricos têm possibilitado a implementação de modelos alternativos, de caráter participativo. Baseando-se em conceitos e classificações de estudos sobre alocação de recursos escassos, o artigo analisa diversas experiências brasileiras de aplicações de mecanismos de alocação de água e sistematiza os principais elementos conceituais e metodológicos que concorrem para o seu sucesso como instrumento ou como componente de outros instrumentos de gestão de recursos hídricos. Essa análise mostra a importância da adaptação dos mecanismos de alocação de água a cada realidade regional, nos seus aspectos conceituais e metodológicos e na definição de múltiplos objetivos estratégicos.


ABSTRACT: Although the water allocation mechanisms historically adopted in Brazil are characterized by the strong intervention of the public sector, the state and national water resources policies has made the implementation of alternative models with participative character possible. Based on concepts and classifications of scarce water allocation studies the article analyses several Brazilian experiences of water allocation mechanisms applications and systematizes the main conceptual and methodological elements which concur to its success as an instrument or a component of other water resources management instruments. This analysis shows the importance of the adaptation of water allocation mechanisms to each regional reality, in their conceptual and methodological aspects and in the definition of multiple strategic objectives.

PALAVRAS-CHAVE: Alocação de água, gerenciamento de recursos hídricos, instrumentos de gestão de recursos hídricos.

KEY-WORDS: Water allocation, water resources management, water resources management instruments.

Artigo completo: http://www.abrh.org.br/rega/REGA_v4_n1.pdf

Referência: Alan Vaz Lopes, A. V. & M. A. S. Freitas. A alocação de água como instrumento de gestão de recursos hídricos: experiências brasileiras. REGA – Vol. 4, no. 1, p. 5-28, jan./jun. 2007

Administração pública contemporânea

(*) Marcos Airton de S. Freitas
É inegável, conforme Bresser-Pereira, que, no Brasil, no plano político deu-se uma evolução do Estado oligárquico ao Estado democrático, mesmo que de elites. No plano administrativo, percebeu-se um avanço do Estado patrimonial em direção ao Estado gerencial. E no plano social, houve um movimento de uma sociedade senhorial para a sociedade pós-industrial. Essa transição, que na Europa durou algumas centenas de anos, no Brasil ocorreu muito rapidamente, de modo que esses três tipos de administração (patrimonialista, burocrática e gerencial) se articulam e sobrevivem, em maior ou menor escala, na Administração Pública contemporânea.
Do último baile da Ilha Fiscal, como bem nos reporta Raymundo Faoro até a década de 30, predominou no país um Estado patrimonialista. Somente com a criação do DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público), em 1938, verificou-se um primeiro passo no sentido de se implantar um serviço público organizado, onde se previa a realização de concurso público e fixavam-se critérios para a aquisição de bens e serviços. Outros marcos foram: a promulgação do Decreto-lei 200, de 25 de fevereiro de 1967, que dispôs sobre a organização da Administração Federal; e a Constituição Federal, de 1988.
A reforma do aparelho do Estado, nomeada também de reforma administrativa ou reforma gerencial de 1995, no governo FHC, inseriu-se no bojo de um conjunto de propostas e medidas elaboradas, dentro de uma visão neoliberal, no sentido de atingir a modernização e a adaptação do Estado brasileiro às novas demandas do mercado e às crescentes relações entre os Estados. Essa reforma passou por alguns avanços e retrocessos, em funções de interesses diversos, indo desde a resistência à mudança, passando pelo corporativismo da máquina burocrática, pelos interesses políticos-eleitoreiros, até o interesse do grande capital em obter benefícios do Estado.
Dentro dessa lógica, o Estado burocrático-industrial e o Estado gerencial seriam estados de transição de uma política de elites para uma democracia moderna, isto é, em uma democracia na qual a sociedade civil e a opinião pública seriam cada vez mais importantes, e na qual a defesa dos direitos republicanos, ou seja, do direito que cada cidadão teria de que o patrimônio público seria usado de forma pública, seria cada vez mais possível e necessária. Mesmo com todos os esforços, atualmente, é fato, ainda coexistem esses três tipos de administração nas três esferas de poder (União, estados e municípios).
A idéia norteadora da reforma do aparelho do Estado relacionava-se com os conceitos de eficiência, flexibilização, controle finalístico, contrato de gestão, qualidade e cidadão-cliente. Como alcançar, porém, esses conceitos na prática? Quais seriam, portanto, as possibilidades e os limites dos controles baseados nos resultados (autonomia), tendo em vista os condicionamentos impostos pelo princípio da legalidade (burocracia)? Como evitar que o administrador num contexto de total submissão ao texto legal e à excessiva fixação de regras para o alcance do objetivo pretendido, acabasse por enfatizar os meios em detrimento de um resultado mais eficiente e rápido, tendo em vista o permanente controle, tanto interno, quanto externo?
É cediço a ênfase conferida à descentralização administrativa, a partir do Decreto-lei 200/67 e da Constituição Federal de 1988, no tocante às políticas sociais. Porém, o que se observou, na prática, foi uma submissão das entidades descentralizadas às normas aplicáveis à administração direta, acarretando clara perda de autonomia, aparente submissão dos aspectos técnico-científicos em função das exigências políticas, dificuldades das empresas estatais atuarem em condições isonômicas nas relações de mercado com as empresas privadas, face às rígidas normas de licitação e contratação de bens e serviços.
É fácil verificar, portanto, que a reforma administrativa brasileira foi elaborada com adoção parcial dos princípios da new public management, visando sobremaneira à melhoria da performance pública, a eliminação dos excessos de padronização e da lentidão dos meios. Daí o conceito de accountability – originário das organizações privadas -, interpretado como a obrigação de responder pelos resultados, no sentido do controle orçamentário e organizacional sobre os atos administrativos, do respeito pela legalidade dos procedimentos e da responsabilização pelas conseqüências da execução das políticas públicas.
Em vista desses desafios, deu-se a adjeção de novas formas institucionais de administração pública nos últimos tempos, a exemplo das parcerias público-privadas (PPPs), consórcios, organizações não-governamentais, agências reguladoras, governança em redes, dentre outras. Convém frisar, contudo, que os sistemas de subcontratação e de parcerias, tendência em aumento nesta fase do estado regulador e de esbatimento das fronteiras do setor público, podem acarretar nítida dispersão da autoridade e das entidades às quais é devido à prestação de contas dos resultados de gestão e de utilização dos recursos públicos. O que não se pode, entretanto, esquecer, de forma alguma, é do sentimento de responsabilidade, do qual nos fala Max Weber.
Por fim, não nos custa também lembrar que o modo como a administração pública se organiza é reflexo da sociedade na qual ela está inserida. E, de acordo com a teoria social de Mangabeira Unger, pode-se entender a sociedade como um artefato. Ele ensina que a “sociedade é feita e imaginada, que ela é um artefato humano e não a expressão de uma ordem natural fundamental”. A idéia da “sociedade como artefato” no mínimo implica a não sujeição da história humana à providência divina, ou noutras palavras, os povos fazem e refazem a sociedade ad libitum.

(*) Marcos Airton de S. Freitas é escritor, Engenheiro Civil, Pós-graduando em Gestão Pública.

http://www.diariodopovo-pi.com.br/opiniao.php

Wednesday, April 02, 2008

Fábio, o fobófobo



Antonio Cardoso Neto (Brasília-DF)

E pensar que eu não acreditava nessas coisas. Bem feito! Quem me mandou mexer com isso? Se eu pudesse fazer o tempo voltar para trás... não, eu não quis dizer voltar no tempo; é só força de expressão, quero ficar aqui mesmo, já chega o que tenho sido obrigado a agüentar desde a semana passada. Como é que eu poderia imaginar que aquela bobagem ia dar nisso? Se eu soubesse que era sério, não teria falado daquela maneira, com tanta convicção. Eu estava só brincando. Jamais imaginaria que ele fosse morrer de verdade. Quando falei em voz alta que entregaria minha alma ao diabo se o avião dele caísse, não imaginava... eu estava meio bêbado, só isso... não imaginava que o avião fosse cair de verdade. Não que me sinta arrependido por ter falado que desejava sua morte, pois ele era um canalha que merecia isso mesmo. Também não tenho medo de que as pessoas que me ouviram dizer essa asneira lá no bar pensem que tenho alguma coisa a ver com a queda do avião. Estou apavorado é com Lúcifer, Belzebu, seja lá como se chame o demônio, Mefistófeles, sei lá. Não, não, não! Não estou invocando o capeta, só estou me referindo a ele na terceira pessoa. Será que também não se pode chamar seu santo nome em vão? Santo nome, não! Não foi isso que eu quis dizer. Não estou comparando Deus a Satanás. Meu Deus, já estou começando a blasfemar...

Acho que vou enlouquecer, doutor. Faz quase uma semana que não durmo direito, não agüento mais. Que tormento! Não agüento mais! Meça a minha pressão, por favor. Estou com a boca seca; o senhor me arranja um copo d’água, por favor? Será que estou morrendo? Será que já vou me encontrar com ele no inferno? Ajude-me, doutor, pelo amor de Deus. Essas pílulas são boas mesmo? Devo tomar assim, sem água? Ah, aí está o copo d’água! Obrigado, doutor, mas estou desesperado. Meu Deus do céu, por que fui me meter nisso? O fogo eterno...

Será que o diabo não é um servo de Deus, criado para encurralar nossas pretensas certezas? E se a realidade física for apenas um teste da nossa fé, e tudo for uma provação? Como é que se chamavam mesmo as árvores que existiam no centro do Éden, aquelas do fruto proibido? Não eram a Árvore da Ciência e a Árvore do Bem e do Mal? Pode ser que a Ciência seja um artifício arquitetado pelo Criador para pôr nossa crença à prova. Talvez a racionalidade científica não passe de uma emboscada para aqueles que não têm fé. Mas se for assim, será que Ele teria nos concebido só para provarmos que cremos Nele e que O amamos? Nesse caso, não teria sido mais cômodo se tivesse criado seres crédulos e acima de qualquer suspeita? Porém, como somos incrédulos e mal-agradecidos, pode ser que haja necessidade de que sejamos postos à prova continuamente. Mas se o Príncipe das Trevas estiver a serviço do Criador, há um lado maléfico na essência de Deus. Lá estou eu blasfemando de novo... perdão, meu Deus! É a tentação! O senhor acha que esse comprimido vai me fazer ficar livre do diabo, doutor? Por toda a eternidade...

Se Deus é onipotente, então Ele exerce controle sobre todas as criaturas, não é, doutor? Por outro lado, se Ele estiver limitado a engendrar apenas criaturas que se submetam à sua autoridade, Ele não é onipotente. Mas Ele é bom, e quiçá Sua infinita bondade O tenha feito preferir não ser assim tão onipotente e aceitar os caprichos do diabo, exógenos à sua vontade... mas como sou incoerente, doutor! Estou tentando demonstrar racionalmente que a racionalidade é uma miragem gerada pelo Todo-Poderoso. E tudo isso para provar para mim mesmo, por puro egoísmo, que se o coisa-ruim estiver a serviço da Providência Divina, eu não fiz mais que servir a Deus. O senhor acha que, além de incoerente, eu também estou sendo egoísta?

***

A minha boca não está mais seca como antes. Deve ser efeito do remédio. Como é que fui entrar nessa de horror? Estou morrendo de vergonha do senhor, que fiasco, doutor. Que papelão ficar ali como uma criança com medo do capeta, de Deus e de tudo. Que besteira. Agora estou me sentindo otimamente bem. Como a farmacologia se desenvolveu nesses últimos anos, hem? É uma coisa fantástica. A ciência é uma coisa fantástica. Ah, que disparate acabei de dizer. A ciência é fantástica, veja só, doutor. Fantástica, a ciência, justo a ciência. De fantástica a ciência não tem nada; seus princípios incontestáveis se fundamentam na realidade concreta e objetiva. Ela é insensível aos nossos humores e angústias, pois a natureza é indiferente ao martírio do antílope ao ter sua garganta dilacerada pelas garras do leopardo. Se somos frutos de Deus, então também o somos do diabo, pois quem, além do diabo, poderia ter concebido uma obra de tamanha crueldade como a cadeia alimentar?

E a consciência, então? Eis outra obra demoníaca. Por que será que temos consciência, quando poderíamos funcionar muito bem se fôssemos autômatos? Sem cérebro a vida seria muito mais fácil. O sujeito nasceria como se ligassem um motor de arranque. Daí em diante, bastaria acionar o piloto automático e ir vivendo até morrer. Pode ser que não sentíssemos prazer, mas também não sentiríamos culpa, e não teríamos remorso de nada.

Mas é a consciência que nos faz raciocinar. Viva o Império da Razão! Veja essas simples pílulas que o senhor me receitou, doutor. Foi só tomar, e pimba! Pouco tempo depois e aqui estou eu, bem humorado, contente; nem pareço aquele cara que na semana passada estava apavorado com o diabo. Esse negócio de alma, espírito, fantasma, é tudo conversa mole. A vida é pura química. Quer maior prova disso do que essas pílulas que tenho tomado? Estou me sentindo outro. E que outro sou eu além de alguns miligramas de substâncias químicas a mais? É isso. A vida é só isso. Pura química, nada mais que isso. Não somos nada além de matéria bruta.

O senhor é judeu, não é? O que o senhor acharia se descobrisse que os cristãos, os muçulmanos e os judeus passaram toda a História prometendo um monte de tolices e se trucidando mutuamente por uma causa imaginária? E se a nossa consciência fragmentada em bilhões de mentes não passar de um delírio de Brahma ou de Buda, e tudo isso, inclusive as religiões monoteístas, for uma ilusão? E não precisa ir longe, até a Índia ou o Tibete. Conheci um irlandês que dizia que a realidade é uma alucinação causada por abstinência muito prolongada de álcool.

A velocidade da luz é absoluta. O senhor sabe que não existe luz parada, não é, doutor? Só existe luz na velocidade da luz. O senhor também sabe que a luz é composta de fótons. Então, não existe fóton sem velocidade. Em outras palavras, a massa do fóton sem velocidade é zero. Mas, na velocidade da luz, o fóton tem massa. Se estivermos encerrados em uma caixa com velocidade constante, por exemplo, um elevador, não conseguimos saber se estamos parados ou não. E se o universo for como o fóton? E se o universo inteiro estiver se deslocando com a velocidade da luz? Será que tudo não passa do nada se deslocando com a velocidade da luz? “Se deslocando com relação a quê?”, o senhor poderia me perguntar. Em relação a nada, pois a velocidade da luz não é relativa, doutor. Será que tudo existe porque nada existe? Não, não é jogo de palavras, doutor... pense nisso.

De acordo com os físicos que trabalham com Mecânica Quântica, qualquer observação interfere no comportamento das coisas. Segundo eles, a natureza muda seu comportamento quando tentamos esquadrinhá-la, fazendo com que a realidade seja inobservável, tornando, assim, inútil qualquer descrição que tentemos fazer dela. E se não somos capazes de conhecer nem o que nos rodeia, como é que podemos tecer comentários sobre o que está além da vida?

O senhor nunca ouviu dizer que a galinha é a maneira encontrada pela natureza para que um ovo possa produzir outro ovo? Como? Clarice Lispector? Não, quem disse isso foi Samuel Butler, que morreu dezoito anos antes do nascimento dela. O primeiro a surgir foi o ovo, e a vontade do ovo é absoluta, doutor. O ovo usa a galinha sem a menor consideração pelas suas dúvidas existenciais, seus conflitos psicológicos e suas indagações metafísicas. O ovo não é mau; ele é apenas indiferente às aflições da galinha. Na verdade, é uma relação simbiótica a que o ovo estabelece com a galinha. Sim, pois é o ovo que impõe as regras dessa relação. A galinha não tem a menor escolha. Ela fica à procura do orgasmo o tempo todo, mas quem lucra com isso é o ovo. O orgasmo é a arma secreta da evolução e da seleção natural, que, por sua vez, são parte do estratagema construído pela natureza para que as espécies se perpetuem, e a gente passa a vida inteira trabalhando, descobrindo coisas e inventando moda, tentando justificar a existência, que, no fundo, não passa de um efeito colateral dessa estratégia montada pela natureza, para que um ovo produza outro ovo.

Passei a vida juntando meus cacos: uma parte andaluz, um pedaço calabrês, um quarto português e outro tanto meio desconhecido disputado entre batavos, provençais, quimbundos e tupinambás acorrentados aos grilhões inquebrantáveis de DNA. Nem eu nem ninguém somos culpados por agirmos assim ou assado, visto que somos fantoches da tirania genética; meros títeres manipulados pelos cromossomos. Ah, sim... há também a herança comportamental que adquirimos como resposta à manifestação da sociedade na nossa vida pessoal. Mas a sociedade só existe porque nossa frágil espécie, não tendo garras nem couraça, foi forçada a viver coletivamente. Sempre que surge uma oportunidade, as pessoas preferem ficar sossegadas, longe da turba, e sabem que sexo é mais importante que política. Se a realidade é naturalmente injusta, só resta à sociedade transformá-la em algo artificialmente injusto. Cabe então à sociedade racionalizar a injustiça inerente à existência. Tenho mais esperança no passado que no futuro da Humanidade. A vida mundana não tem o menor sentido, e a consciência não sobrevive à morte. Parece que foi Manuel Bandeira quem descreveu um defunto como sendo matéria liberta para sempre da alma extinta, não foi? Estou começando a ficar atormentado com isso. Que vazio, que abismo... como é que eu faço para sair dessa, doutor? Me ajude, por favor...

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